segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A nobreza do lesionado


Se coisa houve que fez Brian Kirkpatrick vibrar alguma vez na vida foi o golo que Steve Sumner marcou aos 54 minutos do jogo Nova Zelândia - Escócia, que se disputou no Estádio La Rosaleda, em Málaga, no dia 15 de Junho de 1982. Era o Campeonato do Mundo de Futebol. Brian tinha pouco mais de dez anos e assistia pela primeira vez a um jogo. Talvez fosse mesmo a primeira vez que um jogo fosse transmitido na televisão neo-zelandesa, que naquele ano fazia a sua primeira transmissão de mundiais de futebol. Aquele golo, que de pouco serviria para mudar o resultado que naquela altura já dava a vantagem aos escoceses por três a zero, mudou, no entanto, a vida deste miúdo.
Oriundo de uma família ligada desde os tempos mais imemoriais ao Râguebi, Brian cumpria, aos dez anos, a tradição de todos os jovens da família, percorrendo os campos agrícolas da família nos arredores de Gisborne com uma bola de râguebi nos braços. Daquela família já saíra um dos grandes nomes dos All-Blacks, a famosa equipa nacional, na pessoa do seu tio Ian Kirkpatrick, e agora que este terminara a sua carreira, esperava-se que um dos pequenos tomasse o seu lugar como motivo de orgulho da família. Era para esse objectivo que todos os pequenos eram  incentivados.
No entanto, a vida de Brian Kirkpatrick fora abalada pelo Mundial de 1982. Depois da improvável qualificação, a Nova Zelândia não podia ter encontrado um grupo melhor.  A Escócia de Dalglish, a União Soviética de Blokhin e o melhor Brasil de sempre. Para Brian, antes do Mundial, isto era nada, depois do Mundial, seria tudo. Tomado pela emoção de ver Sumner meter-se entre o defesa e o guardião escocês, antecipando-se a ambos para marcar o primeiro golo da história da equipa neo-zelandesa em Campeonatos do Mundo, logo no dia seguinte Brian procurou um lugar para jogar futebol.
Brian alistou-se no Gisborne Rookies, a equipa de formação da sua cidade. Era um pequeno prodígio do futebol, cheio de força de vontade e sonho, um predestinado. O treinador da equipa gabava-lhe o talento e agradecia aos deuses pela sorte de naquela terra seca de talento para o controlo do esférico poder aparecer um rapaz assim. No entanto, a vida de Brian não era facilitada em casa. Magoado no seu orgulho de herdeiro da história do Râguebi, o seu pai tudo fazia para que Brian abandonasse a tola ideia de se tornar um grande jogador na Europa ou no Brasil.
Quanto maior era o burburinho entre os adeptos do Gisborne Rookies, maiores eram as cargas de trabalho de Brian Kirkpatrick nos terrenos da família. Aos dezasseis anos, Brian estudava durante a manhã no liceu local, trabalhava durante a tarde com a família, e só ao início da noite treinava as suas capacidades futebolísticas. O treinador parecia cada vez mais preocupado com o facto de Brian andar sempre muito cansado, notava que isso lhe perturbava os movimentos que eram tão apreciados por todos, mas a carga de trabalho parecia não diminuir. Ainda para mais agora que dois dos seus primos tinham ido para Auckland estudar e treinar junto das selecções jovens de Râguebi.
O pai de Brian, desde sempre insatisfeito com o facto do seu filho mais velho se ter entregue a esse desporto de rufias que perseguem a bola a pontapé, insistia para que este fosse responsável por carregar mais cestos, por subir a mais árvores, por perseguir todo e qualquer animal que pulasse a cerca. O pai de Brian queria que este ficasse cansado ao ponto de deixar o futebol. Brian insistia no seu sonho e lá lutava, todos os dias, para continuar a ser o craque dos Gisborne Rookies, esperando ser notado e convidado para jogar em alguma das melhores equipas da Nova Zelândia ou da Austrália, primeiro passo seguro para o que ele desejava ser uma grande carreira.
Estava Brian Kirkpatrick acabado de fazer dezoito anos quando um emissário de uma equipa inglesa se deslocou a Gisborne para o ver jogar. A sua fama atravessava fronteiras desde que tinha jogado pela equipa nacional de sub-17 e sentia agora que estava mais perto de concretizar o que esperava para a sua vida. No entanto, um dia antes desse jogo que poderia ser decisivo para a sua carreira, Brian escorregou do cimo de uma árvore onde colhia frutas e fracturou a tíbia. Parecia uma queda pequena, normal, mas ao colocar todo o peso do seu corpo sobre a perna direita, Brian sentiu o osso quebrar e o músculo rasgar-se provocando uma dor intensa.
Brian Kirkpatrick ficou para sempre em Gisborne, trabalhador das fazendas da família onde hoje assume a responsabilidade de organizar o trabalho das dezenas de homens e mulheres. A sua carreira futebolística acabou na véspera de se ter tornado grande, com uma operação à tíbia. Seis meses depois Brian ainda tentou regressar aos treinos, mas as dores de uma consolidação difícil do osso impediam-lhe as fintas e o controlo de bola a que tinha habituado todos. Brian é hoje um homem triste. O seu pai, orgulhoso da fama dos sobrinhos que jogam râguebi, não se cansa de lembrar a nobreza do filho, Brian Kirkpatrick. Não há nada mais nobre que abandonar o desporto devido a uma lesão, costuma dizer. Os que o conhecem bem não deixam de notar um leve levantar do lado esquerdo do lábio que só pode ser de satisfação. 

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