segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O homem revoltado


Abdel Kader sempre se lamentou da sua sorte. Filho de um comerciante de Alger, desde cedo seu pai lhe tinha marcado o destino: estudar para vir a ser um doutor, o primeiro doutor da família. Mas Abdel, para surpresa do seu pequeno círculo familiar, sempre encarou esse desejo como um problema. Era um rapaz simples que apenas desejava ser jogador de futebol, mas o pai, incapaz de aceitar esse sonho de infância do seu filho, obrigava-o a estudar. 

Abdel Kader  também nunca deixou de cumprir com o que eram  as suas responsabilidades. E assim, mesmo sendo um francês de segunda na sua Argélia natal, Abdel estudou sempre de uma forma dedicada para ser o melhor da turma, objectivo que atingiu em diversos anos da sua escolaridade, e conseguir entrar para a Universidade. Não era segredo que Abdel aproveitava todos os momentos para sair a jogar futebol com os seus amigos do bairro, mas como actividade de lazer, como brincadeira, não haveria o pai de o castigar, já que Abdel, não só nos estudos, também se mantinha como ajudante dedicado no negócio da família.

Com a entrada na Universidade quase garantida, já que Abdel conseguira uma bolsa para terminar o seu curso dos Liceus, o jovem argelino tinha engendrado um grande plano para, finalmente, poder conciliar o futebol e os estudos. Assim, prestou provas na equipa júnior do Racing Universitaire d’Alger, a equipa de todos os universitários da cidade, conseguindo um lugar no plantel. O pai, não estando de acordo, não podia deixar de se orgulhar pelo filho, aos dezasseis anos, já frequentar os meios da Universidade. E assim estavam felizes os dois. O pai pelo estatuto, o filho pela oportunidade.

A oportunidade e o plano de Abdel eram, no entanto, de maior monta do que aquilo que poderia parecer à primeira vista. Não só conseguira jogar numa equipa de futebol, sonho há muito perseguido, como imaginava que mostrando todas as suas qualidades de guarda-redes treinado nas ruas, Abdel Kader conseguiria chegar à primeira equipa do Racing Universitaire. E, uma vez atingido esse nível, os estudos de pouco interessariam, até porque os seniores do Racing lutavam agora pelo título de campeão nacional.

Abdel Kader treinou-se, afincadamente, durante uma época inteira. Era um novato e precisava de melhorar todos os seus índices, técnicos e físicos. Desde os primeiros treinos que o treinador o via como um prometedor guardião, assegurando-lhe a titularidade da equipa de juniores na época seguinte. No entanto, para Abdel, quanto mais perto estava o sonho, mais perto também estaria a desilusão. E assim foi, no mesmo ano em que conseguiu entrar na Faculdade, 1928, Abdel Kader viu chegar à sua equipa, vindo da modesta equipa do A.S. Montpensier, Albert Camus.

Albert Camus era um francês branco cujo mito parecia ser bem maior do que o homem real. Apesar de ser um jovem como Abdel Kader, Camus era conhecido no meio dos estudantes por ser um brilhante pensador e conversador. Era presença assídua nos cafés e tertúlias da Universidade, sendo que conjugava essa faceta intelectual com o facto de ser, também ele, um prometedor guarda-redes.  E ao chegar ao Racing, Albert Camus vestiu a camisola número 1, enquanto Abdel Kader se habituou a vê-lo, domingo a domingo, desfazer o seu sonho.

Depois de dois anos a ver jogar Camus nos juniores, Abdel Kader dedicou-se ao estudo da Filosofia. Camus teria sido o grande guarda-redes do Racing nas suas vitórias no Campeonato Argelino da década de 1930, não fosse a doença tê-lo afastado da prática desportiva. Abdel Kader, depois do desgosto de lhe ver roubada a possibilidade de ser futebolista, viu também Camus roubar-lhe o protagonismo no campo da filosofia. Certos homens nascem para viver na sombra. Foi o que sempre pensou Abdel dos sonhos de grandeza que o seu pai lhe tinha reservado. 

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