quarta-feira, 27 de outubro de 2010

As virtudes


Ser um jovem calado é uma virtude muito apreciada pelo padre católico de Bondoukou, cidade do interior da Costa de Marfim, e a isso juntava Jean-Baptiste o seu nome, tão católico e bem intencionado, tão lavado de pecado na injustiça da história, que faziam dele um modelo para os outros meninos que frequentavam as lições de catequese. No meio da mais sincera pobreza, o padre pregava a palavra de Cristo para um pequeno grupo de crianças que, entre o respeito e o temor, esperavam ansiosamente serem libertadas de obrigações para dar uns pontapés na bola.
Jean-Baptiste era também um nome cheio de razões. Na verdade, os seus pais deram-lhe este nome para agradecer a sobrevivência a um parto complicado. Dedicando-o ao primo de Jesus, esperaram que a criança não ficasse às portas do céu por falta de baptismo. Ao chegar lá acima, anunciando-se como Jean-Baptiste, era certo que lhe franqueariam a entrada. Encerrava em si, ainda, uma grande contradição. É que ninguém na família sabia falar francês. Todos comunicavam numa das línguas locais, o Abron, e escolher um nome francês era, de certa forma, oferecer ao filho um destino estrangeiro.
Para além da catequese e das brincadeiras naturais das crianças, Jean-Baptiste frequentava a escola de formação do Scaraboutou Sports, uma equipa secundária da Costa de Marfim. No entanto, por mais longínquos que sejam os locais onde se joga futebol, um talento é uma coisa impossível de se esconder. E Jean-Baptiste Koulibaly era agora um talento a que ninguém ficava indiferente. Calado, sempre calado, mas um defesa-central  que impunha respeito na sua área. Como aos dezasseis anos tinha já um físico impressionante, foi contratado para ir jogar na Europa. Para a família, Jean-Baptiste tinha conquistado os favores de Deus.
Koulibaly assinou pelo CFR Cluj, uma equipa romena recuperada das cinzas da história por um milionário com um sonho. Iuliu Muresan andou pelo mundo a contratar jogadores e um dos seus empresários julgou ver em Jean-Baptiste uma esperança para o futuro. O primeiro ano passou-o na equipa de juniores e confirmou todo o seu potencial. Jean-Baptiste tinha jogo. A única ressalva que lhe faziam os treinadores era o não falar. É que Jean-Baptiste passara de ser um rapaz calado para ser um rapaz totalmente ignorante da língua que se falava à sua volta.
Sem conhecimento mínimo de nenhuma língua europeia, Jean-Baptiste tinha todas as dificuldades para se expressar ou compreender aquilo que lhe diziam. E tendo toda a sua escola sido limitada à catequese, toda a sua vida entregue à virtude de ser um bom rapaz, agradecido aos favores de Deus, Jean-Baptiste nem estranhava. Enquanto o deixassem jogar na sua posição, fazer o que sempre fizera para evitar os adversários de chegar à sua baliza, estava seguro. De resto, dormia onde lhe apontassem uma cama, comia onde lhe apontassem uma mesa. Era um rapaz simples.
No ano seguinte, acabadinho de fazer 18 anos, Jean-Baptiste Koulibaly passou a treinar com a equipa principal do CFR Cluj. Tendo muita gente na equipa que fizesse a posição de defesa-central, o treinador insistia que Jean-Baptiste jogasse mais na direita, a tapar a lateral. Mas fazer com que Jean-Baptiste compreendesse era tarefa bem mais difícil. Sempre Jean-Baptiste encontrava forma de se colocar no meio do terreno, a tentar liderar tropas, com gestos e gritos que mais ninguém percebia. Talvez por isso tenha passado a maior parte da época sem sequer ser convocado.
Só que longas são as épocas e, algumas vezes, curtos os plantéis. Na véspera do encontro com o AS Roma que definiria a continuação do CFR Cluj na Liga dos Campeões, duas lesões inesperadas e Jean-Baptiste estreia-se nos convocados. Aos onze minutos de jogo  no Estádio Constantin Radulescu, o AS Roma marca e o treinador decide colocar Jean-Baptiste na luta. A intenção era a melhor. Um jogador com o físico de Jean-Baptiste iria dar mais força no embate contra o adversário, num esquema com três centrais. Mas Jean-Baptiste não percebeu. Sempre com a tentação de se posicionar mais ao meio, desguarneceu continuamente o lado direito da defesa e o jogo foi uma luta inglória da equipa do CFR Cluj, não para ganhar ao AS Roma, mas para fazer com que Jean-Baptiste percebesse o que fazia dentro do campo.
Jean-Baptiste Koulibaly só fez esse jogo pela equipa principal. Entrou aos doze minutos e saiu aos sessenta e cinco, quando a equipa sofreu o terceiro golo e já não havia esperanças de qualificação. No campeonato nacional, Jean-Baptiste não teve oportunidade sequer de passar do banco. No final do ano, acabou dispensado. Não tinha condições para continuar como profissional do clube. Voltou para a Costa de Marfim, onde ajuda o padre de Bondoukou a educar as crianças da cidade. Joga no Scaraboutou Sports, vê os jogos da Liga dos Campeões e aprende francês. Talvez ainda volte a ser alguém, no futebol. Se lhe reconhecerem, então, as necessárias virtudes.

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