domingo, 17 de outubro de 2010

Ode ao último passe



dedicado ao Jorge Melícias

O futebol é uma arte. Esta frase passa o tempo na boca de comentadores e jornalistas desportivos. Todos tentam elevar o futebol a uma categoria estética que é, mais das vezes, incompreendida pelos demais. Mas as relações entre futebol e arte sempre foram íntimas. Música, pintura, literatura, cinema – em tantas artes é possível encontrar a presença do futebol ou da festa que o acompanha. Mais difícil será encontrar quem tenha como objectivo, na sua vida, atingir o auge criativo na junção de futebol e arte. Mas houve um homem que tentou.
Juraj Mikulic nasceu em  Trnava, na zona ocidental da Eslováquia. Sempre foi um jovem muito metido consigo mesmo. Desde pequeno se entretinha entre os muitos livros que a sua mãe guardava em casa. Era um leitor desenfreado, lia de tudo, parecendo que ia transformando a sua vida num enorme romance de aventuras, mesmo pouco saindo de casa, senão aquele diário casa, escola, casa, para voltar outra vez a mergulhar nos livros e a encontrar novas histórias e possibilidade de deixar a sua imaginação caminhar pelo mundo inteiro.
Tanta entrega aos livros, e a estar em casa, confundia muito o espírito do seu pai. Tudo bem, ter boas notas na escola seria essencial para o futuro da criança, mas esta precisava de mais alguma actividade que a impedisse de estar sempre pendurada nesses voadores balões da imaginação. E que coisa melhor para trazer o rapaz à realidade do que o meter a jogar futebol? Tinha Juraj doze anos, foi levado pelo pai aos treinos de captação do Spartak Trnava e, embora ninguém lá em casa o esperasse, foi seleccionado para ficar. O miúdo tinha jeito para a bola.
Desde os primeiros treinos que lhe destinaram o lugar do número dez. Juraj era o artista da equipa. Ele lia o jogo melhor que ninguém e sabia sempre estar no caminho da bola. A meio do caminho. Recebia e entregava-a com limpeza, fazia um jogo de linhas limpas e suaves, mas ainda assim dominadoras. Durante toda a sua formação, Juraj Mikulic dominou campos e jogos, colegas e adversários, sempre com a camisola às riscas pretas e vermelhas. Ele era o orgulho da equipa de Trnava e também um exemplo da formação do clube, visto que conjugava os atributos futebolísticos com os estudos.
Juraj Mikulic completara os estudos secundários sem dificuldades. Era também um assíduo frequentador do clube do livro, paixão que não largara. Consideravam-no um prometedor poeta. Lia os clássicos, exercitava o verso, compunha odes que atraíam as atenções dos críticos. No entanto, não deixava de ser estranha a forma como Juraj frequentava os salões literários, com aquele passo aberto e descontraído do jogador de futebol, postura que os outros poetas temiam, ao longe, porque aos futebolistas sempre esteve associada uma injusta aura de causadores de problemas e uma justa fama de conquistadores de corações de meninas indefesas.
O pior é que, da mesma forma que os literatos toleram mal os futebolistas, os treinadores de futebol toleram mal os artistas que não cumprem com as ordens que levam para campo. Talvez tenha sido esse espírito um tanto libertário e poético de Mikulic que levaram o treinador da equipa principal do Spartak Trnava a emprestá-lo ao FK Senica na sua primeira época como sénior. Esta equipa evoluía na segunda divisão eslovaca e era uma boa oportunidade para que Juraj demonstrasse toda a sua vontade de brilhar no mundo do futebol profissional.  Mesmo que não fosse esse o seu único objectivo.
Porque Juraj Mikulic tentava mesmo unir as duas artes em que era mestre, futebol e poesia. E uma vez recusado nos encontros dos poetas de Trnava e Senica, Mikulic fazia uma última tentativa nos campos de futebol. Escrever uma ode triunfal em pleno meio-campo enquanto tentava rasgar o relvado com magníficos passes para golo. Juraj Mikulic tentou isso durante uma época inteira com a camisola vermelha do FK Senica, o número dez nas costas, o desespero do treinador e os apupos dos espectadores cada vez mais presentes sobre os seus ombros. Ele não desistiu. Foi colocado no banco e, no final da época, dispensado. Voltou a casa da mãe, aos livros que ela guarda e onde ele passa os seus dias, mergulhado. A um homem adulto, todos desculpam dias inteiros fechados em casa.

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