sábado, 20 de novembro de 2010

A culpa é do balanço


Sempre junto dos seus pais que passavam boa parte do dia num pequeno restaurante que exploravam num barco pelos canais da cidade, Gerald era um rapaz irrequieto. Gerald não parava quieto a correr pelas ruas de Amesterdão com os seus pequenos amigos, a inventar aventuras, perseguições, corridas e jogos. Era o típico puto traquinas, que toda a gente conhecia, por inícios dos anos setenta, nas ruas que eram atravessadas pelos canais.
Gerald era também um dos miúdos da escolas do Ajax. Muito cedo começou a jogar futebol e dava-lhe o jeito para ser uma das pequenas estrelas. Fez toda a sua escola na equipa do Ajax e era com orgulho que vestia a camisola branca atravessada pela faixa vermelha, uma camisola com grande significado para a sua família porque já o seu tio, Dirk Schoenaker, fizera esse percurso até à equipa principal. No entanto, as parecenças não iam além do nome e do agregado familiar. O seu tio Dirk era médio e Gerald um raçudo defesa-direito.
Uma coisa que Gerald nunca pôde fazer foi ajudar os seus pais no barco-restaurante. Desde muito pequeno que os pais o tinham habituado a adormecer no barco, enquanto eles arrumavam e preparavam o restaurante para o dia seguinte. Um rapaz muito irrequieto em terra, Gerald acostumara-se àquele balanço para adormecer. O problema é que crescendo, bastava-lhe pôr o pé em cima do barco para ser levado pelo balanço das águas a um sono profundo e retemperador. Isso não viria a ser problema porque, no dia em que completou dezoito anos, Gerald foi convidado a assinar um contrato de profissional com o Ajax.
Nos primeiros anos de profissional, Gerald era presença assídua na equipa secundária do Ajax, mas era claro para todos os observadores que ele iria chegar à equipa principal. E assim aconteceu, aos vinte e um anos estreou-se pelo Ajax, numa época de glória para o futebol holandês que recuperava o título de Laranja Mecânica e ganhava o Europeu de futebol. Para Gerald, esse facto animava-o ainda mais a lutar pela titularidade no seu clube, na esperança de um dia poder chegar à selecção holandesa. Gerald Schoenaker ganhara algum protagonismo com a saída de Sonny Silooy para o Racing Paris, mas essa aventura só durou um ano meio, ao fim do qual Gerald voltou a ser um defesa na reserva.
Apesar de ser um dos favoritos do seu treinador, Louis Van Gaal, Gerald preferiu sair para jogar mais. E pode dizer-se que não poderia ter escolhido melhor. Ao assinar pelo Feyenoord de Roterdão, Gerald Schoenaker foi duas vezes Campeão Nacional, ganhou uma Taça Uefa, três Taças da Holanda e uma Supertaça. Foram dez anos de sucesso, quase sempre jogando como titular da equipa, fosse como defesa direito, fosse como libero, uma posição onde, com a idade, aprendeu a jogar, valendo-se da sua experiência e influência sobre os companheiros de equipa. Um lugar na selecção é que nunca conseguiu, primeiro tapado por uma geração mais velha que ganhara títulos, depois tapado por uma geração mais jovem que cedo começou a dar cartas.
Ainda assim, com a nomeação de Louis Van Gaal para seleccionador, Gerald Schoenaker viria a ter a sua oportunidade. Sempre como libero, primeiro em alguns jogos de preparação e depois nas qualificações para o Mundial de 2002, Gerald era um defesa experiente e tinha, por isso, o favor de Van Gaal. A qualificação não estava fácil, a Holanda perdera já pontos em casa com os principais adversários e toda a experiência era pouca para os jogos finais da qualificação. O mais importante de todos eles disputou-se no Estádio das Antas, na cidade do Porto, no dia 28 de Março de 2001.
A Holanda não podia ter entrado melhor no jogo, com um penalty conquistado por Jimmy a ser transformado em golo aos dezoito minutos e com Patrick Kluivert a aumentar a vantagem aos quarenta e oito. Aos oitenta minutos, Gerald Schoenaker entrou, para defender o resultado. Toda a gente confiava na sua experiência, mas poucos esperavam o que lhe aconteceu a seguir. Aos oitenta e quatro minutos, perante o forte balanço do jogo português, Gerald sentiu uma leve tontura, como se adormecesse, e Pauleta apareceu sozinho em frente ao guarda-redes para marcar o 1-2. Ninguém queria acreditar. Portugal continuou a utilizar o seu jogo típico, fazendo a bola passear de um lado para o outro, como se fosse um barco que se aproxima, lento, da baliza holandesa. Aos noventa e um minutos, bola na área e Gerald, mais uma vez, cai adormecido sobre Pauleta e é marcado penalty contra a Holanda.
O jogo terminou empatado. Gerald não voltou a ser chamado à selecção, que acabou por ficar de fora do Mundial. Toda a sua raça e experiência ficaram manchadas por aqueles estranho adormecimento. A maior parte dos adeptos culpou a sua idade, o facto de ser já um veterano, de lhe faltar pernas para acompanhar o ritmo de jogo. A verdade é que poucos meses depois, Gerald Schoenaker abandonou o futebol e os seus pais se reformaram da sua actividade, vendendo o barco. Uma coisa, na sua família, não voltou a ser feita. Habituar as crianças a adormecer com o balanço de um barco.  

Sem comentários:

Enviar um comentário