quinta-feira, 23 de junho de 2011

Bartleby de Sarriá


Enrique Vicenç viveu sempre no bairro de Sarriá, à sombra do estádio do Real Español, seu clube de razão e coração, como ele gostava de dizer. O Real Español é a maior equipa de Barcelona, se exceptuarmos uma outra, da qual Enrique nem se atrevia a dizer o nome. Desde bem pequeno, era vê-lo a correr para as bancadas do Sarriá (que também era o nome do estádio), a vibrar pela equipa das camisolas azuis e brancas, a gozar as vitórias e a chorar as derrotas do seu clube. Não espanta por isso que, mal teve idade para tal, Enrique Vicenç se tenha tornado jogador do Real Español.
Enrique foi sempre o jogador mais destacado das escolas do Real Español. Para além da enorme classe que transportava para dentro de campo, sentia também a camisola do clube como nenhum outro. Diz-se que cedo deixou a escola para que pudesse passar mais tempo junto do Sarriá. E então, bem novo, acumulou com a carreira de jogador uma série de pequenas tarefas na estrutura do clube, desde engraxador de botas, até varredor de bancadas, apanha-bolas ou mesmo técnico de equipamentos. Para Enrique, tudo se fazia, desde que fosse no Real Español.
Na memória de todos os aficionados do Real Español ficaram gloriosos encontros de juniores contra o FC Barcelona (ou, os outros, como dizia Enrique), quando Vicenç pegava na bola e se encantava a fintar todos aqueles que lhe apareciam pela frente, até voltando atrás para fintar pela segunda vez alguns deles, antes de finalizar em golo as brilhantes jogadas. Enrique Vicenç era um fabuloso jogador, um apaixonado pelo seu clube, um odioso adversário dos seus rivais, e tudo isso fez com que crescesse à sua volta uma lenda, um mito apenas semelhante aos dos mais antigos, de que seria ele o líder do primeiro Real Español campeão de Espanha. Era nisso que todos acreditavam.
A ambição de Enrique, por seu lado, não era menor. É claro, ele sonhava com o dia em que pudesse festejar o campeonato no seu Sarriá, rodeado de todas as honrarias guardadas para os heróis dos grandes títulos. Mas também se imaginava a capitanear a equipa do Real Español vencendo uma Taça do Rei, que lhe fugia desde 1940, ou então conquistando uma taça europeia, a Uefa, a das Taças, a dos Campeões até, fazendo o nome do seu clube brilhar entre os melhores do mundo. Era com isso que Enrique sonhava, ele que era o melhor jogador de sempre formado no Real Español.
Quando no início dos anos oitenta se tornou profissional, Enrique Vicenç estava mais perto do que nunca de cumprir o seu sonho. Tudo se confirmava, agora, daquilo que se esperava deste jovem jogador. Os brilhantes jogos no campeonato, as incríveis lutas nos jogos da Taça do Rei, as chamadas à selecção. Enrique era o pólo da atenção de todos aqueles que viam os jogos do Real Español . Depois de anos de lutas infrutíferas, em 1988 chegou a grande oportunidade de Vicenç.  Depois de eliminar AC Milan, Inter de Milão, Viktovice e Club Bruges, o Real Español chegou à final da Taça Uefa para enfrentar o Bayer Leverkusen.
No dia 4 de Maio de 1988, 42000 pessoas enchiam o Estádio Sarriá. Enrique Vicenç saiu em ombros, depois de marcar dois golos na vitória de 3-0 da sua equipa. Os de Barcelona sorriam com a possibilidade tão próxima de conquistar um troféu europeu. Muitos deles foram até Leverkusen para o jogo da segunda mão. A realidade nunca foi tão dolorosa para os adeptos do Real Español. Com uma primeira parte a cumprir as expectativas, os espanhóis acabaram por sofrer três golos na segunda parte, perdendo no desempate das grandes penalidades. Pior que tudo, foi Enrique Vicenç que falhou a última penalidade.
Ele tinha 26 anos e abandonou o futebol. Quando no final do Verão de 88 a equipa do Real Español voltou aos treinos, Enrique Vicenç não apareceu. Os adeptos, apesar da desilusão de Leverkunsen, acreditavam ainda que seria Enrique o líder das conquistas do seu clube e esperavam que ele não os decepcionasse na próxima oportunidade em que chegassem a uma final. Viam-no passar na rua, sempre um pouco cabisbaixo, e muitos acreditam que ele passeava em volta do Sarriá em dias de jogo, como se tentasse ganhar coragem para voltar a entrar no estádio que tinha papel principal em todos os seus sonhos.
Os adeptos sofriam com esta opção de Enrique. E embora isso não os tenha consolado, um texto de Pere Gimferrer na revista Destino orientou-os. Comentando que a carreira de Vicenç estava encerrada para sempre, dizia Gimferrer: “Mas nos olhos (de Vicenç), mais serena, pulsa a mesma chispa: um fulgor visionário, agora secreto na sua lava oculta […]. Para lá do imediato, pressente-se um surdo rumor de oceanos e abismos: Vicenç continua pelas noites sonhando jogadas e golos, embora já não os marque.”
Futebol não jogado, mas vivido pela mente: um final belíssimo para alguém que deixa de jogar.

(Nota: os dois últimos parágrafos são uma transcrição, modificada, de outros dois parágrafos do livro Bartleby & Companhia, de Enrique Villa-Matas.)

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