quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Como uma melancia


Toda a gente o apelidava de Sandía, melancia, pois era isso que faziam lembrar as suas atitudes. Era enganador, como a melancia que se promete verde ao nascer da terra e logo a descobrimos vermelha fogo por dentro, como se fosse sangue. No entanto, desse sangue nasce um frescor de água que se derrete mal toca a nossa língua. A ele, chamavam-no Sandía por ser assim, enganador. Adrián Cruz não era homem em que se pudesse confiar. O seu ar um tanto angelical escondia um carácter extraviado, capaz das piores coisas para que se saísse bem numa vida que pouco lhe prometia. Era por isso que lhe chamavam Sandía. Por isso, ou por ser originário de Concepción, uma das zonas de maior produção de melancia do Paraguai.

Adrián Cruz começou a jogar futebol no Deportes Concepción, uma equipa à sua imagem (ou será que foi ele que cresceu à imagem da equipa?), com um grande historial de problemas de violência e de desacatos dentro e fora do campo. Adrián tornou-se profissional de futebol por um daqueles acasos do destino. Desde jovem que fazia parte da equipa do Deportes e tinha dezoito anos quando o extremo-esquerdo titular se lesionou. Como o outro jogador que fazia essa mesma posição na equipa sénior estava castigado, ao treinador não restou outra opção que a de chamar Sandía para um jogo contra a equipa do Antofagasta. Tão bem se saíu Sandía que não mais largou a titularidade, pelo menos naquela época.

Era um jogador impossível de defender. A sua forma de jogar confundia todos, adversários e colegas de equipa. Tremendamente indisciplinado na táctica, Adrián cruzava o campo da direita para a esquerda sempre à procura de fugir aos seus adversários como quem foge da polícia (outra das coisas em que Adrián apostava o seu sucesso), elaborava fintas nunca antes vistas pelas terras onde jogava, rematava dos ângulos mais difíceis de forma a surpreender os guarda-redes. A isso juntava também um inconfudível mau humor e uma enorme garra em vencer, sendo que para tal não hesitava em entrar com os dois pés nas canelas de todo e qualquer adversário que tentasse fugir dele.

No início dos anos oitenta, o Deportes Concepción desceu à segunda divisão, no que seria o início de uma época conturbada para o clube, entre insucessos desportivos e problemas monetários. Adrián Cruz, grande jogador, tinha contra si a lastimosa fama de jogador incontrolável. E assim, não recebendo o seu salário no Deportes e sem encontrar quem pagasse a sua transferência, acabou por ir para o Brasil, para Goiás, onde trabalhava em plantações de melancia brasileira. Era uma função que conhecia dos seus tempos anteriores ao futebol, quando a bola não lhe permitia levar algum dinheiro para ajudar em casa. E como Adrián não tinha mesmo qualquer vergonha na cara, ser jogador de futebol ou colher melancias tanto lhe dava, desde que pudesse ganhar o que comer.

Ainda assim, todos sabemos que nunca um bom jogador de futebol passa incógnito, esteja em que lugar do mundo estiver. A Adrián Cruz aconteceu exactamente o que era esperado: foi descoberto. Num fim-de-semana em que saiu para beber umas cervejas com amigos, acabou a brincar com uma bola, deixando toda a gente espantada com as capacidades do seu pé esquerdo. Logo foi convidado para vestir a camisa do Santa Helena Esporte Clube, equipa goiana que disputava a segunda divisão do estado e nunca havia ganho título algum. Sandía tudo mudou. De repente, a equipa conhecida como “Fantasma do Interior” aterrorizava todos os adversários. Sandía pegava na bola e lançava a confusão à volta da área adversária, marcando e dando a marcar infinitos golos.

O grande jogo dessa 2ª divisão Goiana, em 1986, foi disputado entre o Rioverdense e o Santa Helena, infatigáveis rivais. Vencendo, o Santa Helena ganharia o seu primeiro título, acontecimento que os de Rio Verde tudo fariam para evitar. Talvez não se tenha jogado futebol no Estádio Pedro Romualdo Cabral. Talvez não fosse da bola que os jogadores corriam atrás, mas uns dos outros. Havia pé no pau, pau na cabeça, pedrada para todo o lado, não só no relvado como nas bancadas. Até que ao minuto oitenta, a bola chegou aos pés de Adrián Sandía Cruz, o melancia paraguaia, que, verde e enorme rebolou por entre defesas com punhos e antebraços abrindo o caminho, fez desaparecer a bola entre a promessa de sangue e, num remate poderoso, rasgou as redes do Rioverdense. O Santa Helena foi campeão.

Adrián tornou-se uma lenda em Goiás, como já era no Paraguai, embora não pelas mesmas razões nem com os mesmos efeitos. O futebol não crescia para o profissionalismo no Santa Helena, mas ser o craque da equipa valeu-lhe muitos e bons anos a trabalhar com os maiores produtores de melancia da região. Quando decidiu deixar o futebol, o seu mau feitio era já ignorado, aceite, como uma valência comum aos grandes artistas que povoam as quatro linhas em todas as partes do mundo. Também agora a sua aparência de durão era enganadora. Foi por isso que Sandía entrou na galeria dos mais respeitados jogadores de Goiás. Por fazer aquilo que a maioria nem em sonhos consegue imaginar que é possível: resolver campeonatos.

Sem comentários:

Enviar um comentário