quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O Caminho


Kim Minsoo nasceu numa Seoul dominada pelos japoneses, em 1940. A vida dos coreanos não era fácil n meio do declínio do Império do Sol Nascente, tanto que, durante a infância, Kim sofreu as devidas consequências. Como se as coisas não pudessem piorar, e pouco depois da Coreia ter declarado a sua independência, a cidade voltou a ser ocupada pelas tropas do Norte, sendo que, desta vez, foi praticamente devastada. Kim tornou-se, desde muito novo, um sobrevivente. Passou fome, muita fome. Viu coisas horríveis, coisas que não se atreveu a contar a ninguém mas que ainda lhe habitam algumas noites em que o sono não lhe vence os medos.
Em 1954, uma Coreia do Sul recentemente pacificada mas totalmente destruída, apresentou uma equipa de futebol no Campeonato do Mundo. Conseguida a qualificação e organizada a viagem para a Suiça, o país ficou na expectativa de resultados que mostrassem ao mundo a fibra deste povo que, pela primeira vez em muito tempo, parecia conseguir dar alguns passos por si próprio, sem que ninguém tentasse uma entrada assassina por trás. Não havendo, nessa época, nenhum serviço de televisão ou rádio na Coreia, a população juntava-se em volta da sede da Federação Coreana de Futebol onde eram relatados os principais eventos dos jogos disputados. O balanço foi pobre, duas derrotas com a Turquia e Hungria, na altura, considerada a melhor equipa do mundo. Mas o bichinho do futebol contagiou a população coreana.
Kim Minsoo fui um dos jovens que descobriu, em 1954, aquilo que quereria fazer para o resto da vida, correr atrás de uma bola de futebol. O campeonato coreano ganhou também algum vigor com a entrada da equipa nacional no Campeonato, por frágeis que tenham sido os resultados. Havia agora uma aposta comum em constituir uma equipa que pudesse obter vitórias fora da Península.  Kim Minsoo tornou-se jogador da Universidade de Kyunghee, disputando o Campeonato Nacional com várias equipas ligadas às estruturas do estado: exército, marinha, serviços secretos, comandos, companhia eléctrica, todos tinham equipas em competição. Kim jogava como interior esquerdo, aparecendo muitas vezes a finalizar as jogadas de ataque da sua equipa. Tinha uma constituição frágil, mas entregava-se à disputa como um verdadeiro guerreiro.
As vitórias internacionais da Coreia do Sul surgiram na Taça Asiática, de onde saiu campeão em 1956 e em 1960, tendo esta última sido disputada em casa, para gáudio de milhares de coreanos cada vez mais loucos por futebol. No entanto, uma nova desilusão surgiu em 1962, com a não qualificação para o Mundial disputado no Chile. Essas derrotas lançaram a discussão sobre a renovação da equipa nacional. Se para alguns, os heróis do Bi-Campeonato Asiático continuavam a ser os melhores jogadores, para outros, era urgente chamar novos jogadores à equipa. Ainda assim, foi com os mais experientes jogadores que a Coreia do Sul se apresentou em Israel para disputar mais uma Taça Asiática. Kim Minsoo, na altura já um jogador com currículo no Campeonato Nacional, ficou mais uma vez de fora.  A equipa nacional fez um torneio sofrível, voltando de Israel com um terceiro lugar inaceitável para quem, pela primeira vez, tinha direito a ver resumos na televisão.
Estavam então lançados os dados para a introdução de novos jogadores  na equipa nacional sul-coreana, a poucos meses da disputa dos Jogos Olímpicos de Tóquio, uma competição que todos, na Coreia do Sul, esperavam bem sucedida. Mas as confusões na preparação do torneio, os problemas para escolher uma equipa que agradasse a todos as equipas do campeonato e a inexperiência internacional dos jogadores escolhidos, deitaram por terra as esperanças coreanas. Quer o treinador, quer os jogadores, eram completamente ignorantes das novidades introduzidas no futebol internacional, quer a nível da preparação física, quer a nível táctico. E começando por defrontar a equipa da Checoslováquia, os sul-coreanos mais pareciam pequenos animais perdidos dentro das quatro linhas. Ao intervalo já perdiam por 4-0. No início da segunda parte, perante um adversário mais relaxado, Kim Minsoo ainda conseguiu reduzir, com um golo que viria a salvar-lhe a carreira de futebolista. Mas até ao final, os checoslovacos marcaram ainda por duas vezes.
Nos dois jogos que se seguiram a experiência não foi melhor. 4-0 contra o Brasil, que se apresentou com uma equipa de jovens, e 10-0 contra a União Árabe, no que ficou por ser a maior humilhação do futebol coreano de todos os tempos. As consequências não se fizeram esperar. Praticamente todos os jogadores foram afastados da Selecção, sendo que em 1966 a Coreia do Sul nem sequer participou na qualificação para o Mundial. A melhor forma de evitar novas vergonhas era, mesmo, não jogar, segundo os dirigentes coreanos. Quando foram retomados os contactos internacionais, Kim Minsoo era o único resistente da tristemente célebre equipa de 64. E após mais duas qualificações falhadas, na Taça da Ásia de 68 e no Mundial de 70, conseguiram voltar à ribalta em 1972.
Na Taça da Ásia disputada na Tailândia, os Coreanos bateram o Cambodja e a Tailândia, tendo empatado, na fase preliminar com o Irão, e perdido com o Kuweit e com o Irão, no reencontro para a final, disputada em Banguecoque. Kim Minsoo foi o líder da equipa, marcando quatro dos sete golos conseguidos. Apesar de ser considerado como o veterano da equipa, a garra que Kim colocava em todas as jogadas, aliadas ao seu profundo instinto de sobrevivência, valeram à Coreia do Sul a restituição do respeito internacional e a Kim a possibilidade de voltar a poder entrar de cabeça erguida nos estádios do seu país. Isso era, agora, a sua maior felicidade. Perceber que tinha escolhido o caminho certo para ser um homem honrado.

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